Setembro 08, 2022

Um empreendedor que fez da herança projeto de vida

Não é à mesa, mas a bordo de um veículo cruzado de jipe e trator que se faz esta conversa. E faz sentido que assim seja, já que esta não é uma quinta de produção de vinhos comum. Isso mesmo se torna flagrante mal cruzamos os portões da Quinta das Murgas e antes mesmo das vinhas ou da adega somos surpreendidos com estábulos e um picadeiro onde cavalos andam à guia, com um lago onde se refrescam patos e gansos, com uma zona florestada cuja limpeza é garantida pelas cabras, de estatura normal e anãs, que por ali se passeiam placidamente.

Às portas de Lisboa, em Bucelas, paredes meias com a Quinta do Avelar (de um dos primos), fazem-se vinhos de nicho, muito apreciados por consumidores especiais, criados a partir do que dão as vinhas antigas, plantadas pelo avô, Sérgio Geraldes Barba, e já por João França no solo altamente calcário que dá personalidade única ao Murgas.

Depois de ter estudado e trabalhado no estrangeiro, de ter tido um restaurante na Costa de Caparica e de fundar uma imobiliária e uma consultora de IT, ainda antes ter chegado aos 40 anos, decidiu honrar a memória do avô. E com essa decisão, alimentada pelo espírito empreendedor e pela vontade de eternizar o que lhe ficou na alma, da forte relação que tinha com o avô, fez renascer um legado de família.
Quando sugere a visita guiada pela propriedade, já passaram por nós os miúdos – os da família, sobrinhos e primos, mas também os da colónia de férias que a prima organiza na quinta ao lado, proporcionando a mais de uma dúzia de pequenos umas férias de campo raras nos dias que correm. Hão de cruzar-nos o caminho outras vezes, a fazer perguntas sobre o modo de vida rural ou a desfrutar da liberdade de quem está habituado à terra e brinca sem as restrições das cidades e das famílias modernas.

A herança que se tornou projeto

“Isto começou tudo com os aviários do Freixial, que chegaram a ser os maiores da Península Ibérica”, conta-me João, já com o barulho do motor a penetrar na placidez da quinta. Para fazer face ao crescimento do negócio, o avô, que lhe preenche boa parte da história e das melhores memórias, foi alargando a propriedade, chegando aos mais de mil hectares de quintas em Bucelas, hoje repartidos pela prole: 7 filhos e 18 netos.

João lembra-se de o projeto de vinhos Quinta das Murgas ter funcionado muitos anos e se ter quebrado quando o avô morreu, sem que a família lhe desse continuidade, há quase duas décadas. Até ele se recusar a deixar tudo morrer.

A quinta que lhe coube tem 40 hectares e neles João herdou algumas vinhas antigas, que recuperou com a ajuda de Bernardo Cabral, a partir de 2014. A essas foi juntando as novas, já plantadas por ele a substituir as castas que ali não tinham grande expressão para antes privilegiar as locais Arinto, Esgana-Cão e Rabo de Ovelha. Em 2017, saiu o primeiro vinho e neste ano prevê estrear-se nos rosés – “estão na moda e temos aqui boas condições para fazer grandes vinhos rosé”.

Começou também neste ano a tentar chegar mais longe, exportando para o Brasil e os EUA, o que implicou duplicar a produção para cerca de 14 mil garrafas de branco e de tinto. E tem grandes expectativas, mesmo porque a aposta em vinhos de grande qualidade e produções limitadas – prescindindo da quantidade em seu nome – tem resultado em cada vez mais procura do Murgas, que já chegou aos melhores restaurantes portugueses, incluindo estrelas Michelin como o Epur e o Eleven, e além-fronteiras, em garrafeiras de topo

Enquanto descreve o percurso das Murgas, João aproxima-se da vinha, inclina-se pela porta e prova as uvas. “Estão espetaculares”, diz-me, desviando depois o olhar para a capela lá em cima, que tem planos para recuperar para enoturismo. Depois sorri e aponta para os burros que se espantam com a nossa presença. “Fizemos aqui uma manga para eles atravessarem o rio e irem comer do lado de lá da ponte, onde há mais pasto, mas eles ainda estão a perder o medo”, explica, com a paixão de um zoófilo.

Também essa veia a herdou do avô, que chegou a ter um casal de leões à solta no jardim da sua casa de Cascais. “Este gosto pelos animais vem dele. Em tempos deram-lhe os bichos bebés e ele mantinha-os em casa, como outras famílias tinham cães. Quando a fêmea caiu à piscina e se afogou, ele ficou com o macho, que andava à solta, até dentro de casa, até crescer e se tornar mais agressivo e o meu avô ter de o trazer para a quinta. Mas mesmo grande, sempre lhe respondia ao chamado, recebia-lhe as festas”, conta. O leão acabou por ter de ser entregue ao Jardim Zoológico, quando a lei determinou a proibição de ter animais selvagens em casa. Mas o avô continuou a visitá-lo e ele a responder ao chamado.

Nos tempos em que o avô Sérgio ocupava a cadeira de patriarca, aos sábados a família reunia-se religiosamente ao almoço no antigo lagar de azeite da quinta, recuperado de forma magnífica e com a sala principal dominada pela imensa mesa de madeira com lugar para mais de 30 pessoas. E era impensável alguém faltar ao chamado. Depois da sobremesa, avô e netos iam pela quinta alimentar os bichos.

Agora, além dos cavalos, dos burros, das aves e das cabras, João tem ali lamas, vacas, veados, ovelhas, porcos. Porque gosta que ali estejam, independentemente do trabalho e dinheiro que implicam – “só em rações, é um ordenado por mês”. Uma quinta digna de filme da Disney, de que os miúdos, da casa e visitantes, também usufruem.

O inferno pessoal de não ter o que fazer

Juntar cavalos e vinhos é um dos próximos projetos de João França, em conjunto com a irmã e o cunhado – Martim Portela Morais, um campeão da equitação -, talvez emparelhados com provas de vinhos ou passeios pela quinta. Nesta volta em que seguimos eu e João, temos uma sombra permanente, que ora corre ora se senta à espera de novo arranque. “É a Nala, é a minha terceira filha”, legenda João, afagando a cabeça amarela da cadela que resgatou de um abrigo.

Aos 36 anos, casado com Marta Dantas da Cunha, gestora imobiliária, com quem está há 12 anos e de quem tem duas filhas, Mafalda e Carlota, de 3 e 5 anos, João não chegou aqui por acaso nem por mera herança. A bagagem que traz começou a juntá-la no Colégio Amor de Deus, em Cascais, na escola americana que frequentou dois anos, no curso de Gestão tirado já nos Estados Unidos.

Quando voltou, ao fim dos cinco anos, decidiu fazer uma pausa de seis meses, mas não aguentou nem um terço do tempo. Num ponto de desespero, abriu um restaurante porque não achava justo ter empenhado o seu tempo a construir valor pessoal para depois ser contratado e pôr essa experiência ao serviço de outros a troco de 600 euros.

O restaurante abriu-lhe as portas à reabilitação urbana e comprou o primeiro prédio que recuperou, no Cais do Sodré, em 2013. Foi a estreia da Prime Lisbon, que continua a alimentar. Pelo meio, com dois amigos montou, já em 2017, uma consultora de IT, a Onrising, que hoje conta com 200 colaboradores.

Um hobby que é um negócio sério

“As coisas vão surgindo, é preciso é estar no sítio certo à hora certa. E eu estava a dar em doido sem fazer nada. Acho que gosto tanto de trabalhar por causa dessa sensação de não ter o que fazer, de não me sentir útil”, diz-me João. Explica que o vinho é quase um hobby, ainda que o siga de forma muito profissional, vivendo as vinhas e passando muito do seu tempo na quinta; “é um projeto a longo prazo e que me diverte imenso”, resume. E logo acrescenta a lista de projetos em pipeline para o seu “hobby”, que incluem um projeto de enoturismo, uma wine shop e o reforço da capacidade exportadora.

“Só para os Estados Unidos, foram, em 2018 e em 2019 umas 6 mil garrafas. E eles querem muito mais. O representante desta empresa é americano, adora os vinhos de Bucelas e fez um périplo pelas quintas, acabando por escolher o nosso para representar nos Estados Unidos”, orgulha-se. Também Brasil e Reino Unido estão nos planos, o que obrigará a reforçar a produção.

De resto, fora das Murgas, há o surf, o downhill, o motocross e os demais desportos radicais que o encantam. Mas também a quinta no Alentejo, em Porto Covo, onde João está a desenvolver um outro projeto de turismo. Muito por onde ocupar o tempo, portanto.

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